quinta-feira, 24 de abril de 2008

Para Pensar: Mais uma lição
Fonte: DC - 18/02/2007 - Viviane Bevilacqua

Mais uma lição

Cada vez que eu reclamar da vida vou lembrar de Rosângela, que atravessou o Oceano Atlântico para ver as filhas, quem sabe pela última vez

Todas as pessoas têm uma história para contar, é o que eu sempre digo. Nós é que, muitas vezes, não temos tempo ou paciência de ouvir suas histórias. Se pararmos para escutar quem está ao nosso lado, com certeza aprenderemos alguma coisa.

Pois, há alguns dias, eu precisei encarar uma viagem de quase 11 horas de avião. Impaciente como sou, passo mal só de me imaginar sentada no mesmo lugar durante muito tempo - e, pior ainda, na classe econômica, onde mal há espaço para mexer os braços. O que fazer durante todo este tempo?

Dos três filmes à disposição durante o vôo, dois eu já havia visto. Os canais de música a bordo poderiam me ajudar a passar o tempo, assim como as revistas e o livro que eu levava na bolsa. Mas, mesmo assim, seriam 11 horas... Haja paciência e costas para agüentar tanto tempo.

O vôo já estava quase iniciando e a poltrona junto à minha continuava vazia.

- Graças a Deus, vou viajar sozinha. Assim posso me acomodar melhor - pensei. Minutos depois, porém, uma mulher aparentando uns 40 anos, mais ou menos, pediu licença e sentou ao meu lado.

- Lá se foi minha janelinha - reclamei comigo mesma. Eu adoro viajar na janela, mas desta vez teria de me contentar com o corredor. A moça era baixinha e me pediu ajuda para colocar sua sacola no bagageiro, acima de nossas cabeças. Me contou que não podia fazer força porque havia passado por uma cirurgia havia pouco tempo. Quando ela levantou os braços, observei que tinha uma enorme cicatriz perto do umbigo.

Ela se atrapalhou na hora de colocar o cinto de segurança e ouviu, com muita atenção, todas as instruções da tripulação. Cheguei à conclusão de que a moça não estava muito acostumada a viajar de avião.

Para tentar tranqüilizá-la, decidi conversar um pouco. Rosângela - este é o nome dela - me contou que mora há três anos em Portugal, que foi para lá em busca de uma vida melhor depois que o marido morreu e a deixou com duas filhas para criar. As meninas, uma de sete anos e outra de 15, moram no Brasil, com os avós. Em Lisboa, Rosângela trabalha com faxinas (diarista) em um turno e, no outro, em uma pastelaria. São mais de 14 horas de trabalho por dia, mas ela não reclama. Tem economizado um bom dinheiro. Esta era a primeira vez que voltava ao Brasil para ver a família. Não cabia em si de ansiedade.

Estranhei, porque ela não parecia feliz, apesar de ter sonhado com esta volta ao Brasil durante mais de 36 meses. Só fui entender a situação quando ela me contou que, há alguns meses, descobriu ter câncer no intestino, e que depois de cirurgias e tratamento intensivo, havia ficado boa. Foi aí, então, que decidiu vir ao Brasil comemorar sua recuperação com a família.

A poucos dias da viagem, porém, Rosângela voltou ao oncologista e, após alguns exames, recebeu o diagnóstico: um outro câncer havia atingido o fígado. O caso, muito sério, exigia tratamento imediato. Rosângela, porém, decidiu não mudar seus planos e veio para o Brasil.

- Não sei o que vai acontecer comigo a partir de agora. Mas eu preciso ver minhas filhas, meus pais e o lugar onde eu nasci (interior de Goiás). Depois, volto para Portugal e entrego tudo nas mãos dos meus médicos e de Deus - comentou.

A comissária chegou com o lanche e cortou nossa conversa. Depois, Rosângela não falou mais sobre a doença. Me contou de sua pequena cidade natal, do sonho de conhecer um cinema de verdade, do marido, que era um grande companheiro, e de suas aventuras em Portugal, onde chegou com a cara e a coragem e uns poucos trocados no bolso. Depois, tomou um remédio e dormiu.

Eu não conseguia me concentrar em mais nada. Pensava somente em como a vida tem sido generosa comigo: voltava de uma viagem maravilhosa a Lisboa, sem qualquer tipo de problema ou preocupação. Minha família estava aqui, todos bem de saúde e eu já fazendo planos para novas viagens... E cada vez que eu reclamar da vida, de agora em diante, com certeza vou lembrar de Rosângela, que atravessou o Oceano Atlântico para ver as filhas, quem sabe pela última vez.

viviane.bevilacqua@diario.com.br

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